sábado, 3 de outubro de 2015

Verde como o céu


Ontem quando ouvi a porta bater, sabia que algo estava errado. Caio era demasiado calmo para provocar furacões. Pensei em estabelecer diálogo de imediato, mas depois de uma pausa, julguei ser melhor esperar. O tique taque do relógio costuma ser um grande conselheiro, como se a cada segundo vivido, despertasse em nós uma gota extra de sensatez. A fúria sempre pareceu-me um rato, arma-se em gigante quando corre por um pedaço de queijo, mas desmancha-se em fragilidade quando apanhada na ratoeira. Esperar, no entanto, nem sempre se rebenta em sabedoria. Há quem passe toda a vida à espera enquanto tornamo-nos apenas mais novos para a morte. Morri com Caio naquele dia.

Deixei a sala em busca de uma resposta. Empurrei a porta lentamente e encontrei o mais vago dos quartos. Apenas a cama bagunçada, propositadamente desarrumada, numa filosofia inventada numa tarde de domingo. Caio e eu estávamos convencidos de que a bagunça andava de mãos dadas com a criatividade e, já há alguns meses, proibimos um ao outro de ajeitar os lençóis. As marcas de uma noite bem dormida é o acalanto da alma, sonhamos. Mas o vazio do quarto preencheu-me como a água ao mundo. Naquele instante, foi o ar que me respirou e não o contrário. Num sôfrego desespero, olhei pela janela do nosso décimo andar e os olhos apenas me calaram. Lá embaixo, a vida transcorria na loucura de sempre. Miúdos a brincar no playground, mulheres a embalar seus bebês. Carros a sair e entrar. A vida de uma janela de apartamento é algo insustentavelmente estável.

Deixando o quarto onde não havia nenhum vestígio, percorri todo o apartamento. Apesar da curta distância entre a sala e a cozinha, a lavanderia e o banheiro, demorei toda uma vida a encontrá-lo. Não obtive êxito. O jogo de se esconder é das maiores armadilhas da vida. Desde cedo, aliás, carrego um trauma, fruto de ouvir da minha avó a história de uma mulher que ao se esconder em pensamentos, perdeu-se, e nunca mais voltou pra casa. Prometi a mim mesma que sempre me refugiaria na verdade, sem jamais omitir a menor das narrativas a se debruçar nas minhas estrelas cinzentas. Têm sido anos de grande luta.

Do sofá, ouvi a campainha. Estou certa de ter mantido o controle da situação, mas a minha vizinha vinha a me socorrer, como se eu necessitasse de salvação. Quis não abrir a porta, mas o fiz. Notei nela um olhar de pena, leviano. Pobrezinha, também a ela deve ser caro isto de manter as aparências, num mundo imaginado. Um dia devo contar-lhe sobre a mulher de que falou a minha avó, assim ela poderá salvar-se dessa irrealidade em que vive e que nem ao menos consegue disfarçar.  A verdade é uma realidade que custa. É preciso estar de olhos bem fechados para vivenciá-la.

Fez questão de me abraçar, limpar as lágrimas - bem, não estou muito certa de que havia lágrimas. Consolou-me, enfim. Expliquei-lhe que tudo estava sob controle. Ouvira a porta bater, senti que o Caio estava irritado, fui em busca dele, mas nada. A porta, afinal, bateu-se para fora e não para dentro, como havia suposto. Há portas que nunca deveriam ser fechadas, nem sequer, deveriam ter sido inventadas. Fechamos os caminhos e depois culpamo-nos por não encontrar as saídas. Deve ter sido isso que aconteceu ao Caio, abriu a porta. O vento a bateu. Nós somos um casal assim, com uma filosofia libertária. O andar é para fora. A esta altura, Joana, minha vizinha, estava com um olhar ainda mais desolado. Senti que algo estava a correr muito mal. Não demorou muito para que aparecessem os senhores de branco que me conduziram até este lugar onde agora me encontro.

Aqui tenho muito tempo disponível para pensar. Seria bom que outras pessoas tivessem a mesma oportunidade. As portas também nem sempre estão abertas e, mesmo assim, entra mais gente do que se sai. O Caio ainda não deu notícias. Outro dia terminou sem a sua visita e todos se recusam a falar dele. Aproveitei o banho de sol para olhar o céu. É verde. Reluzente. Infinito. Quando assim o retratei numa aula de desenho, fui duramente repreendida pela professora de artes. É azul que deve ser - insistia ela. Coitada. Há gente que olha e não vê. Há tanta gente, mas tão poucos olhos. Sou uma felizarda. Amanhã, tenho certeza, o Caio virá.

*Conto vencedor do 2º Desafio Contadores de Histórias do RL



Escrito em 11/07/2014

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Identidade

Era demasiada confusão. Estremecia em pensamentos que a lugar algum o levavam. Misturava vozes, não sabia as definir. Pensou em apagar as luzes e assim remediar-se no silêncio do escuro. Não havia silêncio. Já não sabia definir as sensações porque sequer sabia o que estava sentido. Tentou chorar, fez esforço, mas derreteu-se em caretas. Estava resoluto, não era confusão, era ausência. Não era mistura, era vazio. Não havia pensamentos, havia incertezas. Incertezas vãs sobre dúvidas que ainda estariam por vir, pois agora não existiam. Era isso. Inexistência. No limiar entre o ser e o não ser. Deitou-se. Tentou perder-se, partir em fuga, mas falhou esta missão também. Estava preso a si e de si não era possível fugir. Quis ser outro, quis começar de novo, quis estar num lugar desconhecido, quis conhecer outras pessoas, quis viver outras histórias. Não sabia quem era nesse instante. Saberia um dia? Prendeu-se a essa questão. Tomou rumos. Voltou a se perder várias vezes. Sobreviveu ...



Escrito em 16/09/2012

domingo, 23 de agosto de 2015

Asas

Caído. Ao redor nem mesmo as folhas, o chão não poderia estar mais limpo. Um vento, não típico daquela época, ecoava com os barulhos algozes de um inverno sem fim. Não era inverno. Passos apressados seguiam um caminho que parecia ser único, irremediável, incontestável. Não era o único. Vozes, umas suaves, outras nem tanto. Gritos, encontros, reencontros, desencontros. Caído. Suor, olhares, cansaço, dever, calor. Caído. Números, cores, notícias, sombras. Caído. Ternos, uniformes, jalecos, casual, esportivo. Caído. Raquetes, bolas, livros, calculadoras, agendas, óculos. Caído. Buzinas, travessias, passagens, idas, voltas. Um cruzar com tantos, sem interagir sequer com um. Caído.


Pobrezinho ...


... o passarinho ...

... caído.




Escrito em 03/10/2011

sábado, 22 de agosto de 2015

Calmaria

Chegou com grande dificuldade. Mal pôde abrir a porta e, cambaleando, passou pela sala. Machucou o joelho na mesinha de centro e se esticou com toda força para chegar ao banheiro. Sentado no chão depositou no vaso aquilo que lhe havia de pior. Rastejou-se até o quarto, onde notou que a grande cama estava bem arrumada. Sensação de longa ausência - incoveniente. Não retirou o que sobrava na cama, simplesmente deitou-se. Vestido como estava, ainda de sapatos, permaneceu até a manhã seguinte. Não conseguiria dormir. Sua mente parecia mesmo estar prestes a explodir. Sensações, pessoas, cores, olhares. Movimentos muito acelerados para alguém deitado em posição fetal. Pensou cochilar de olhos abertos, pois fechados o mundo lhe parecia mais evidente. Fracassou. Fora tomado de sentimentos que não sabia exatamente quais eram. Talvez medo, dor, quem sabe angústia, uma fúria por calmaria. Desejos que não se explicitavam pela razão. Quisera algo, mas não sabia o que era, apenas o que não. Não queria uma nova manhã, outro dia de sol, ver o mar ou passear pelo parque. Não era sobre o futuro, mas sim sobre o passado. Desejo de ter dito o que não disse seja porque não teve vontade, porque não lhe convinha ou sequer pareceu-lhe digno. Desejo de regresso que já agora não se sustentava. Agora. Aquietou-se o quanto pôde na contramão de uma mente que não se acalentava. Levantou-se tempestuoso quando já de manhã a campainha tocara. Recebera as flores ... os sinceros sentimentos.




Escrito em 06/10/2011